ANTES E DEPOIS DE DANTAS (AD-DD)
Lenio Luiz Streck
Antes de qualquer coisa, quero deixar claro que não discutirei o habeas corpus de D. Dantas.
Considero, aliás, correta a decisão do Min. Gilmar, porque, como dworkiano (de Ronald Dworkin, jurista norte-americano), penso que os argumentos utilizados para justificar prisões devem ser (sempre) de princípio, e não de política.
O que me preocupa é o “depois de Dantas" (DD), quando se tem a impressão de que os direitos fundamentais têm efeito ex nunc (isto é, só valem a partir de agora) em terrae brasilis.
Alguns cientistas políticos e juristas chegam a chamar a PF e o MPF de “fascistas”, comparando a situação de AD (antes de Dantas) ao clima pré-1964 (sic).
Fosse eu um pessimista, começaria a estocar comida, pois a impressão é de que a PF é a KGB, e o MP é a Prokuratura.
De todo modo, parcela do establishment já encontrou a solução, construída ao apagar das luzes do recesso parlamentar: “blindar os escritórios de advocacia”.
Afinal, pelo menos segundo o Dep . Michel Temer, idealizador do projeto, é ali que está (va) o problema...! Agora vai! (de todo modo, o projeto foi vetado em parte pelo Presidente da República).
Passados 20 anos e o que fazemos? Continuamos a olhar a Constituição com os olhos do séc. XIX.
Na literatura jurídica (penal) majoritária, continua visível a equivocada contraposição “Estado-indivíduo”, pela qual “o Estado é mau” e o “cidadão é o débil” (e nisso põem-se de acordo jurístas “dogmáticos” e “críticos”)!.
Vejamos: enquanto a Constituição aponta para um forte dever de proteção (para os alemães, Schutzplicht), no sentido de que, no Estado Democrático, devemos usar também o direito penal para “jogar duro” com a delinqüência “asséptica”, nosso parlamento aprova leis que dizem o contrário, por exemplo, “alçamos” o crime de fraude à licitação a crime de “menor potencial ofensivo” (paga-se cesta básica); na mesma linha, consideramos mais grave o ato de subtrair galinhas (quando praticado por duas pessoas) do que as condutas substanciadoras de crimes como a lavagem de dinheiro e de delitos contra as relações de consumo e o sistema financeiro; também construímos uma benesse para os sonegadores de tributos (que, de certa forma, transforma a sonegação em uma rentável “aposta sem riscos penais”), bastando o pagamento do valor desviado para que o crime se esfumace (lembremos como M. Valério se safou recentemente – claro que nisso o judiciário tem responsabilidade, ao não declarar a inconstitucionalidade desse “favor legis”).
No Brasil – e repito isso há 20 anos - “la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos” (frase de um camponês salvadorenho).
Pudera: predominantemente, o ensino jurídico continua manualesco. É indústria que mais cresce. Já se vende Constituição em quadros sinópticos. E nos aeroportos. A doutrina não mais doutrina. Aliás, outro dia um Ministro do STJ afirmou: não importa o que a doutrina diz...! Pois é.
Nenhum país que tenha passado pela etapa do Estado Social abriu mão de um duro combate à corrupção e congêneres. E o Brasil sequer passou por essa etapa.
A tese aqui é “direito penal mínimo para o andar de cima” e “direito penal máximo para a ratatulha”, e com uma pitada de “direitos sociais de favor” para esse “rebotalho”.
Aliás, basta examinar o modo como tratamos os crimes da “casa grande” desde o Império.
Enfim, tudo para que a pirâmide não se altere.
Somos reféns de uma privatização do Estado.
Mas de que modo poderíamos fugir do passado se ficarmos marcados pelo patrimonialismo e pelo “extrativismo da coisa pública”?
Se vacilarmos, correremos o risco de o parlamento “repristinar”, nesta fase DD, a pena do açoite..., mas para aqueles que se atreverem a incomodar o andar de cima.
Pensemos: seriam os vigaristas alemães (ou americanos, etc.) menos ou mais vigaristas do que os congêneres brasileiros? Seria um “azar” nosso? Ou, quem sabe, o problema não estaria – lembremos Hobbes e Freud – (também) nos “limites e no papel da lei”? Talvez nos falte Hobbes e sobre Rousseau.
A propósito, ao contrário do que pensam alguns intelectuais brasileiros, a sociedade melhora sim, se nos livrarmos dos rufiões do dinheiro público; eles são um problema, sim!
Se somarmos apenas alguns dos seus crimes (e desfalques), dará mais do que o “andar de baixo” furtou e roubou nos últimos 10 anos (e esses não surrupiaram do Estado).
Pergunte-se, nos países desenvolvidos, o que acontece com essa gente.
Se a política, aqui, está reduzida ao noticiário policial é porque, talvez, tenhamos corruptos demais. Talvez precisemos prendê-los. Seria um bom começo!
E isso não colocará a democracia em risco.
Afinal, o habeas corpus não foi feito apenas para pessoas inocentes; também pode ser usado por escroques.
Lenio Luiz Streck
Procurador de Justiça-RS, Doutor e Pós-Doutor em Direito
Professor universitário
Dentre outras obras, autor de:
.Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma nova crítica do Direito.
.Hermenêutica Jurídica e (m) Crise.