A base de todos os atos de quaisquer das esferas das funções legislativa, executiva ou judiciária assenta-se sobre valores que, reconhecidos ao longo da história de cada país, são positivados, expressos na Constituição, mediante princípios.
Os princípios têm caráter bastante abrangente, e, em determinados momentos, podem prevalecer um sobre outro. Quando se privilegia um princípio no caso concreto não quer dizer que o outro princípio, não privilegiado, seja afastado do sistema.
Princípios podem conviver, e, principalmente, devem ser otimizados, como normas jurídicas de primeira grandeza e maior hierarquia. Às vezes, há contraposição na sua própria expressão escrita, por exemplo: a propriedade pode ser usada livremente, atendida a sua função social. Nem o direito à vida é absoluto, pois relativizado em caso de guerra declarada.
As questões sob investigação entram neste permeio de discussão de valores, que, na maioria das vezes, só encontram luzes, e só podem ser resolvidos mediante análise do caso concreto. E, mesmo em caso concreto, não se encontram decisões unânimes.
Em casos ditos difíceis (hard cases), uma das técnicas que pode ser utilizada é a da razoabilidade ou da proporcionalidade, onde se verificam alguns indicadores como: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Tais indicadores servem para se evitar excessos por parte de quem detém o poder tendo em vista a finalidade pública que se almejou atender quando a coletividade atribuiu a determinado cargo público, por lei, tal poder.
Com respeito à adequação, verifica-se se a medida, restritiva de um valor, quando imposta, atende aos critérios de racionalidade, ou seja, se com tal medida, o objetivo é alcançado.
Quando se trata do indicador da necessidade, busca-se saber se o resultado desejado não poderia ser alcançado sem restringir direitos. É necessário mesmo se tomar tal atitude? Se necessária, esta medida foi a menos onerosa?
Finalmente se analisa o indicador da proporcionalidade em sentido estrito. É questão de peso. Ou seja, o bem que se vai conseguir supera, compensa o sacrifício exigido de outros direitos.
Então resta saber quais os valores, constitucionalmente protegidos, que estão em choque. Não se correria o risco de haver excessos por parte da Administração ao impor restrições de vez que o campo da discricionariedade é cada vez mais reduzido pela limitação de opções do Administrador frente aos direitos que o cargo público deve respeitar e fazer valer? A própria comunidade lhe atribuiu poderes na medida de seu dever de exercer função em prol da mesma comunidade. Há o perigo de se descambar da discricionariedade para o arbítrio.
A "supremacia" do interesse público se verifica quando a ação do Administrador promove a dignidade da pessoa.
Por invasão a determinados direitos fundamentais, sem forte razão explicitada para salvaguarda de outro direito constitucionalmente protegido, o controle disciplinar também pode se transformar em assédio moral.
As barreiras estabelecidas para que haja, como em outras eras, um tempo para o trabalho, um para o estudo, e outro para o lazer, foram colocadas em dúvida pelo sociólogo Dominico de Masi, autor, entre outras obras, do Ócio Criativo. O mundo virtual possibilita que, ao mesmo tempo, sejam as tarefas realizadas, independente do tempo e do espaço.
Se fosse implantado um chip no cérebro capaz de mensurar a atividade/preocupação do servidor 24 horas por dia, por certo seria computado um tempo muito maior de planejamento, estudo, trabalho, voltados para causa pública, fora do específico horário de trabalho e do prédio da repartição, no trânsito, em casa, nos momentos de silêncio, vigília.
O telefone, o pensamento em familiares hospitalizados, o contato com as informações sobre a sua específica atividade, lápis, xerox, e-mail, horário de expediente, se colocados em barreiras intransponíveis de separação público/privado, seria a tentativa de viver artificialmente num mundo robotizado, manietado, cujo controle se quer, mas escapa às garras de poder gerencial, do olhar obtuso do administrador, franzindo o cenho carregado na direção da tela do computador, na tentativa de supreender o servidor público, como se fosse um moleque em plena prática de travessura.
É possível o uso coordenado sem complexo e sem culpa de todos estes instrumentos, pois se vive numa teia de relações humanas, na qual a atividade do servidor público está inserida, onde o trabalho vai muito além do meramente burocrático e mecânico. O computador, muito mais do que simples máquina de escrever.
Quais os critérios, pois, que serão utilizados para definir o que é e o que não é "interesse público"? Ou "uso exclusivo no serviço público"? Quais os critérios que permitirão, em afronta a valores da intimidade, privacidade, fazer vingar o "interesse público"? Tal interesse deve ser anteriormente demonstrado. E, como em qualquer processo de restrição, deve haver uma correta manifestação de motivadores, para que torne legítima tal intervenção. Se possibilitar processo de caráter penalizador, há que se saber, de antemão, o que seria falta a deveres e proibições, quais atitudes seriam consideradas puníveis, qual a punição e qual a autoridade competente para aplicação de penalidade.
A Constituição Federal/1988 assegura, no artigo 5º:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
XLI -a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
LXI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
LVII- ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Como se coibir exageros? O que é exagero? Qual o uso normal e moderado? Atribui-se ao Estado (Leviatã?) o poder de devassar a intimidade de e-mail, protegidos por senhas pessoais? Se a senha é particular, é uma chave individual para se entrar no sistema, é meio de salvaguardar a privacidade ou, contraditoriamente, somente meio de se controlar a entrada no sistema pela possibilidade de responsabilização?
Existe um poder diretivo do comando da Administração. Há, pois, um poder disciplinar, poder de planejar, de controlar e de corrigir. Se o equipamento e programas, colocados á disposição do tralhador, pertencem ao Estado, como pode o servidor usar "à vontade"o que não é seu, já que exerce função? E função é um conjunto de tarefas que se exerce para outrem. Essa é a natureza do trabalho de um servidor público, que deve prestar contas de sua atividade, múnus público.
Há um conjunto de tarefas que são atribuídas ao servidor, sua produtividade sujeita ao controle da chefia imediata. Tem-se que um controle a mais sobre o seu equipamento, ensejaria que também houvesse controle a mais sobre xerox, lápis, caneta, grampeador, clips... Quem vai monitorar e realizar verificações? Estaria implícita a competência de invadir a privacidade assegurada por senhas, para deletar arquivos em área pessoal do servidor? Quando muito, isto poderá ocorrer em áreas comuns da rede, não nas particulares.
O tema é polêmico e países há, como o Reino Unido, que já, em 2000, propuseram regulamentação para tal uso. Assim é que, neste país, permite-se o monitoramento de e-mails dos empregados desde que os mesmos sejam comunicados sobre tal fato, não sendo necessária a obtenção do consentimento por parte do empregado. Entende-se, nesta linha, que o servidor deverá ser previamente informado da política de utilização do correio eletrônico, da fiscalização e monitoramento, além das proibições.
A Administração tem o dever de apurar irregularidades, mas mediante uma justa causa para tanto. Para ilustrar, tem-se o caso de decisão judicial sobre uso de Lotus Notes, no qual se julgou adequada a aplicação de sanção a auditor fiscal por envio de mensagem de conteúdo dito obsceno para estagiária, causando-lhe constrangimentos. Diz a ementa que “o julgamento acerca do conteúdo do e-mail enviado pelo AFTN, através do correio eletrônico da SRF, estribou-se no padrão sócio-moral do homem médio, reputando, de modo plenamente plausível, ofensivas as manifestações ali contidas”. A conduta do auditor contrariou Portaria que restringia o uso do correio eletrônico LOTUS NOTES, vedando o envio de mensagens de caráter ofensivo e obsceno. Assim, em decorrência de infringência ao dever de observar as normas legais e regulamentares, bem como a de manter conduta compatível com a moralidade administrativa e de tratar com urbanidade as pessoas, foi aplicada a penalidade de suspensão por 30 dias. A sanção não foi aplicada somente tendo em vista o uso indevido do Lotus Notes, mas também o constrangimento causado.
Vê-se que há uma tendência no sentido de se normatizar internamente o uso de equipamentos, internet, para salvaguardar o sistema de invasões de vírus, e de conteúdos duvidosos capazes de causar problemas ao mesmo sistema e coibir o uso abusivo.
O difícil é saber até que ponto é abuso de um ou de outro. Até que ponto a Administração abusa de seu poder em tolher, cortar o cordão virtual que liga o servidor ao contexto cultural em que vive?
A Administração é responsável pela gerência de equipamentos que custaram caro ao erário (povo, contribuinte). O olhar fixo no "uso exclusivamente a serviço", poderia dar a impressão de que o servidor não devesse estar sempre plenamente informado, culto, "plugado". É o que se espera de quem faz parte de quadro da elite do serviço público, imbuído do sentimento de melhor servir. O uso sempre é permitido, é necessário, por vezes, desejável, dado o nível sócio-cultural que, hoje, se exige de um profissional, inserido em seu contexto social.
A um tempo nem o empregado/servidor pode abusar, nem a Administração desrespeitar o direito do empregado/servidor ao sigilo, e ao direito à informação, violando suas mensagens e seus arquivos pessoais.
Só fortes razões, de fato e de direito, motivadamente explicitadas, adequadas, proporcionalmente balanceadas, para, de plano, identificar qual o "interesse público" dominante no caso concreto, capaz de soprepujar o interesse/direito à privacidade/intimidade, que faz parte dos direitos de liberdade do cidadão/empregado/servidor. O Estado, em sua origem constitucional, se comprometeu a respeitar, não intervindo na individualidade. A Constituição limita poderes em benefício de direitos fundamentais da pessoa.
A denominada "supremacia do interesse público" só tem razão de ser em respeito aos direitos fundamentais.
Na medida em que se deva proteger o interesse coletivo, quando em conflito com o particular, deverá ser muito bem explicada, clara e congruentemente provada, a preponderância daquele. Só então se poderá verificar, não as mensagens particulares, mas aquelas de cunho público, relativas ao serviço, que com ele possam a estar em desacordo, como é o exemplo de venda de informações privilegiadas. Mesmo assim, a fonte primeira não é o e-mail, nem o Lotus, nem o Expresso. A fonte primeira é a própria mensagem, quando recebida, porque saiu da esfera particular do emitente, exteriorizada no mundo dos fatos. Só na seqüência é que poderá o empregador/Administração interferir no acesso à internet criada pelo próprio empresário/Administração, como é o caso de Lotus Notes, Expresso, mas nunca, nos particulares, como yahoo/uol e similares, para o que se necessitaria de autorização judicial.
Mesmo assim, haverá Juízos que não permitiriam tal acesso nem ao Lotus Notes, embora haja julgados que caminharam no sentido de serem aceitas como provas válidas mensagens encontradas em e-mails, e em computador da empresa, operado por empregado/usuário. À primeira vista, nas áreas comuns de assuntos da empresa, pode o empresário vasculhar tal conteúdo. Desde que o acesso seja mediante senha particular, já começariam a ocorrer possíveis problemas. A invasão já denota aspectos de ofensa à privacidade, intimidade.
Em outro caso, como questão trabalhista, considerou-se válida a utilização de mensagens encontradas no computador da empresa, pelo que se provou o repasse de informações sigilosas para ex-empregado, e houve a demissão com justa causa. Tal decisão é de acórdão do Tribunal Regional do Trabalho contrariando, entretanto, decisão de primeira instância, em que o juiz considerou as provas assim obtidas com flagrante desrespeito ao comando constitucional que protege o sigilo das comunicações. Ao contrário, no Tribunal, o relator considerou que o empregador pode vigiar, impedir e punir as atitudes inconvenientes. Confere-se esse direito de vigiar porque existe o conflito de dois interesses: o individual e o coletivo. "E entendo que nesses casos o coletivo tem de ser privilegiado", disse o relator. Também o TST já se manifestou no sentido de que o empregador pode monitorar as mensagens enviadas a partir do e-mail do local de trabalho.
No entanto, tais monitoramentos sempre estiveram atrelados a casos graves, como, no exemplo citado, que foi o repasse de informações sigilosas da empresa. Neste caso, o relator informou que não houve quebra de sigilo legal de correspondência pessoal, senão necessitaria de autorização judicial. Não houve quebra de sigilo porque o assunto era comum ao empregador e ao empregado.
Vê-se, portanto, que, sempre, em todos esses casos, são ressalvadas as mensagens trocadas em cunho pessoal e particular do empregado/servidor, o que deve ser respeitado. O acesso foi a mensagens de cunho de interesse tanto do empregado quanto do empregador, questões do negócio, questões da atividade profissional, e não as pessoais..
O acesso à internet/expresso/notes poderia ser limitado, mas quando justificadamente comprovado o abuso, com critérios pré-definidos. Se também houver uma infringência disciplinar, deverá ser instaurado sindicância/processo, para possibilitar o exercício do contraditório e da ampla defesa. A razão para a tomada de tal atitude deveria ser justificada, motivadamente esclarecida, a partir de exteriorização de fato concreto, e não feita uma devassa, a varrer indistintamente os arquivos. Tal motivação deve permitir, em procedimento dialético, a ponderação e a explicitação de razão suficientemente forte para sobrepujar outro direito constitucionalmente protegido, por vários meios, inclusive por Mandado de Segurança.
Ainda assim, só poderiam se acessados arquivos de ordem comum a setores da Administração/Empresa. O conteúdo não representaria quebra de sigilo, por ser assunto relativo à atividade, assunto comum ao servidor e à Administração, e não aos arquivos que até no sistema utilizado são denominados de "pessoais", para o que se exige autorização judicial.
No máximo, poder-se-ia fazer a verificação de Notes/expresso, de mensagens de ordem de conhecimento tanto da Administração Pública ou Empresa, quanto do servidor ou empregado, e não de seus particulares. Ainda que no Expresso/Notes, nunca de e-mail pessoal, yahoo,/uol, etc, cujo acesso não deve ser negado ao servidor, pois homem e cidadão, nenhum é uma ilha. O uso deve ser tão razoável quanto o uso de lápis, clips, xerox, caneta, disquetes, papel. O tempo tão razoável, quanto de leitura de jornal, de telefonemas, cafezinho, conversa, banheiro. Sem desprestígio da chefia imediata, responsável pelo ordenamento dos trabalhos, pelos bens patrimonializados.
Ao se pensar em penalidade, sanções, o norte deverá ser o princípio da razoabilidade, em devido procedimento legal, ao abrigo do contraditório e da ampla defesa, afastando o risco de abusos de ambas as partes. Poderia haver administrativamente a restrição de acesso somente àquelas áreas imprescindíveis ao exercício da atividade do servidor/empregado, por um período determinado, podendo também haver responsabilização judicial (venda de segredo, boicote à produção, por exemplo).
A análise dos valores/princípios compreende tanto o direito de a Administração verificar o equipamento de "uso reservado" para atingir a atividade pública, quanto por outro lado, o direito à intimidade, privacidade de todo o ser humano, ora servidor público/empregado, ainda que no seu horário de trabalho.
Há que se compreender também que se é profissional durante vinte e quatro horas, e o mundo virtual não permite mais uma separação completa entre horário de trabalho, lazer e estudo.
É difícil uma previsão anterior ao fato. Quando princípios entram em conflito, só no caso concreto é que se poderá estabelecer uma verdadeira ponderação entre dois direitos constitucionalmente protegidos, para que se busque harmonização.
O servidor terá sempre a possibilidade do manejamento de medidas judiciais para ver garantidos os seus direitos. Por tratar-se de confronto de valores, as decisões haverão de pender para um ou para outro lado, e, quando tomadas por órgãos colegiados, a tendência é de que dificilmente haverá unanimidade, por isso a cautela com que, ao fim e ao cabo, deve ser tratada tal temática.
Todavia, embora difícil, há que se trazer a público qual a diretriz da Administração/Empresa sobre a utilização dos equipamentos/programas, acessos, porque pior seria se todos fossem pegos de surpresa.
A tentativa da harmonização e da otimização dos valores constitucionalmente previstos devem sempre estar na pauta quando do surgimento de iniciativas que visam à regulamentação do uso da informática "no interesse do serviço", para evitar abusos, destinadas a várias classes de servidores públicos a quem se poderia convidar ao debate/diálogo, à participação, e quiçá, ao consenso, e, pela conscientização de todos, atingir-se o objetivo do bom uso de equipamentos/programas/internet.
ACÓRDÃOS REFERIDOS
AG 200504010002829/4TRF/4ª Turma/Decisão 20.4.2005, DJU 25.5.2005
ROMS 16713.STJ/6ª Turma,DJU 23.8.2004
RO02771.2003.262.02.00-4- TRT/SP/Decisão 1/12/2005