O problema da responsabilidade administrativa do servidor público por atos praticados na vida privada: limites ao processo administrativo disciplinar
Procurador do Distrito Federal, procurador-chefe da Procuradoria de Pessoal da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, pós-graduado em direito público e advocacia pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público
Resumo do artigo: O artigo, a partir de uma larga coletânea da jurisprudência dos Tribunais Superiores, Tribunais Regionais Federais e Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, assim como da casuística da Administração Pública, estuda os parâmetros para a responsabilidade administrativa do servidor público pelos atos praticados na vida privada, mas que produzam repercussão funcional negativa em face das atribuições do cargo em que investido o agente público.
1. Fundamento da responsabilidade do servidor público por atos praticados na vida privada
O regime disciplinar do funcionalismo não se preocupa somente com os atos estritamente desempenhados no exercício funcional, mas também busca preservar a imagem, decoro e credibilidade que devem merecer perante a sociedade os que titularizam cargos e funções públicas.
José Armando da Costa acentua que o procedimento irregular do servidor em sua vida privada pode se enquadrar no âmbito da responsabilidade disciplinar, em virtude do fato de a moralidade e seriedade da Administração Pública eventualmente caírem no descrédito diante dos administrados, no caso da presença de elemento inescrupuloso e desonesto nos quadros funcionais do Estado.[1]
Não se pode admitir, portanto, que um policial civil seja conhecido explorador de prostituição infantil, agiota, estelionatário condenado, integrante de quadrilhas, autor de extorsão ou tráfico de drogas, ainda que consume essas condutas reprovadas e criminosas fora do desempenho do cargo, pois, mesmo assim, se evidencia uma incompatibilidade moral da parte da pessoa física para figurar como um componente da Administração Pública e das carreiras efetivas do funcionalismo estatal, sobretudo como combatente da criminalidade, como se supõe ser um policial.
O Estatuto da Polícia Civil do Distrito Federal (Lei federal 4.878/1965), além de regrar que enseja pena de demissão a prática de crime comum contra o patrimônio ou contra os costumes (art. 48), reza:
Art. 43 - São transgressões disciplinares:
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V - deixar de pagar, com regularidade, as pensões a que esteja obrigado em virtude de decisão judicial;
VI - deixar, habitualmente, de saldar dívidas legítimas;
VII - manter relações de amizade ou exibir-se em público com pessoas de notórios e desabonadores antecedentes criminais, sem razão de serviço;
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XXXV - contrair dívida ou assumir compromisso superior às suas possibilidades financeiras, comprometendo o bom nome da repartição;
XXXVI - freqüentar, sem razão de serviço, lugares incompatíveis com o decoro da função policial;
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XLIV - dar-se ao vício da embriaguez;
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LI - entregar-se à prática de vícios ou atos atentatórios aos bons costumes;
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LIII - exercer, a qualquer título, atividade pública ou privada, profissional ou liberal, estranha à de seu cargo;
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LV - adquirir, para revenda, de associações de classe ou entidades beneficentes em geral, gêneros ou quaisquer mercadorias.
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região fincou:
É dever do militar proceder de maneira ilibada na vida pública e na particular. (art. 28, XII da Lei 6.880/80 e art. 14 do Decreto 4.346/02). Razoabilidade de exigência imposta a determinados servidores e agentes públicos que se reconhece em prestígio ao direito à imagem-atributo da instituição à qual pertencem.[2]
Fábio Medina Osório nota, acerca do dever de probidade, que o Conselho de Estado francês reprovou a conduta de policial, que não podia levar em seu escritório uma pistola automática, sem autorização, além de jóias que seu irmão lhe tinha enviado. E isso porque, pouco tempo antes, um roubo armado tinha ocorrido em uma joalheria da cidade. Vale notar que o conselho aplicou o dever de probidade na base de presunções contrárias ao funcionário público, ou seja, ao fim e ao cabo, a efeito de criar uma situação jurídica em seu desfavor. [3]
Fábio Medina Osório assenta, outrossim, que o prestígio da Administração Pública ante os administrados supõe a honra institucional, a boa fama, a reputação e o patrimônio moral das entidades públicas, os quais devem ser respeitados como cânones pelos agentes públicos. [4]
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região assentou:
Não se afigura razoável o preenchimento de cargo de Delegado de Polícia Federal por pessoa que, no passado, foi presa em flagrante delito por posse de cocaína, processada e condenada por tráfico de entorpecentes; foi demitida, a bem do serviço público, por auferir vantagens e proveitos pessoais em razão das atribuições que exercia; entregou-se à prática de vícios e atos atentatórios aos bons costumes; mantinha relações de amizade com pessoas de notórios e desabonadores antecedentes, inclusive com criminosos envolvidos com tráfico de drogas, roubo e furto de veículos; abandonava o serviço para o qual estava escalado; freqüentava lugares incompatíveis com o decoro da função policial; exercia atividades profissionais estranhas ao cargo; e que envolvia-se em transações de armas de calibre proibido, inclusive metralhadoras de origem estrangeira. Confrontando os atos praticados pelo apelante com a norma que estabelece as hipóteses que afastam a presunção de idoneidade moral dos candidatos a cargos da carreira da Polícia Federal, conclui-se que o Conselho de Ensino da Academia Nacional de Polícia agiu dentro da legalidade ao enquadrar o apelante no item 2, alíneas b, f e h, bem como item 3 da Instrução Normativa n. 03/97 do Departamento de Polícia Federal. A Polícia Federal não pode correr o risco que admitir em seus quadros policial com passado tão sombrio, sob pena de por em risco a integridade da sociedade para a qual presta seus serviços, notadamente quando se trata do cargo de Delegado de Polícia. Apesar de não garantir uma conduta profissional irreparável, a investigação da vida pregressa dos candidatos a cargos policiais é um fator de inegável importância no processo seletivo, onde, de plano, a administração deve afastar aqueles cuja falta de idoneidade moral fique desde logo demonstrada pela existência de atos praticados com violação à ordem jurídica posta.[5]
Aliás, M. Waline escreve que, no direito administrativo francês, as faltas alheias ao serviço podem implicar responsabilidade disciplinar, desde que a conduta irregular seja suscetível de se refletir sobre a função pública.[6]
A administrativista francesa Éliane Guichard-Ayoub pontua que um fato da vida privada do servidor pode constituir uma falta disciplinar, se suscetível de causar prejuízo ao funcionamento do serviço, quebra dos deveres de reserva, decoro, dignidade:
De même, um fait de la vie privée peut constituer une faute disciplinaire s’il est susceptible de porter atteinte au fonctionnement du service (manquement aux obligations de reserve ou de dignité, par exemple).[7]
José Cretella Júnior também encarece que a violação dos deveres do funcionário pode ocorrer por faltas cometidas fora do serviço, mas que repercutam sobre a honra e a consideração do agente, a ponto de, por ressonância, refletir-se no prestígio da função pública.[8]
2. Exemplos de repercussão administrativa de condutas irregulares na vida privada
Na atividade de consultoria jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, já foram verificados casos de médico, servidor público distrital, que praticara tantos erros profissionais na atividade privada, até que sua inscrição e registro foram cassados pelo Conselho Federal de Medicina – CFM, o que lhe retirou a possibilidade de exercer a profissão, inclusive na atividade pública, quadro ilustrativo de os reflexos da conduta privada do funcionário se projetarem no campo administrativo, haja vista que desmoralizaria a Administração que seus agentes públicos, seus cirurgiões, fossem conhecidos como pessoas profissionalmente inidôneas, a ponto de terem sua inscrição cassada pelo Conselho Autárquico de Fiscalização Profissional competente.
Como admitir que o engenheiro, titular desse cargo no serviço público, pudesse desempenhar suas atribuições se o Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia já lhe cassara o registro, por causa de gravíssimos erros profissionais cometidos na atividade privada, a ponto de causar o desabamento de viadutos, pontes, prédios residenciais e comerciais? Poderia uma pessoa assim desqualificada ser julgada digna de continuar vinculada ao Estado?
Donde ficaria o prestígio do serviço público nesses casos? Quem são os integrantes dos postos da Administração: médicos cassados pelo CFM, por terem cometido faltas éticas constituídas de erros cirúrgicos repetidos e gravíssimos, causadores de mortes e seqüelas definitivas em diversos pacientes operados quando do exercício privado da profissão? Enfermeiros acusados de cometer abuso sexual contra pacientes em hospitais particulares? Arquitetos e engenheiros que, na função privada, deram causa a desabamentos de prédios residenciais e comerciais devido a erros grosseiros nos projetos e nos cálculos por eles elaborados? Poderiam eles, normalmente, participar dos trabalhos e planos preliminares da construção de hospitais, museus, obras públicas, no exercício da função administrativa?
São casos de típico reflexo, na esfera administrativa, de atos consumados no ofício privado, que desmerecem o servidor público e o afetam nessa qualidade, projetando-se negativamente sobre a função administrativa pública e suas atribuições.
A Lei 8.112/90, nesse particular, destaca que o processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido (art. 148).
José Armando da Costa inclui entre as transgressões disciplinares o comportamento desonroso praticado pelo servidor público inescrupuloso e ímprobo em sua vida privada, porque, se esta abalar o crédito, a seriedade e a moralidade com que devem ser considerados os agentes da Administração Pública, desacreditando, por via indireta, o prestígio estatal perante a sociedade, não mais convirá a permanência do funcionário como integrante da estrutura administrativa do Estado.[9]
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios considerou legítima a demissão de servidores públicos do Distrito Federal por atos irregulares praticados quando do exercício da função de membros do conselho fiscal e da diretoria comercial de Caixa Beneficente de empresa pública distrital.[10]
3. Parâmetros para a responsabilidade administrativa por atos da vida privada: o requisito da violação da moralidade profissional
Egberto Maia Luz enuncia, porém, que “a responsabilidade que interessa ao Direito Administrativo Disciplinar é aquela que se refere à coisa pública.”[11]
O entendimento justifica a idéia de que a punição disciplinar por fato não praticado no exercício da função pública, nem a ela relacionado, deve ser expressamente capitulada em lei, como regra geral.
Se um analista de finanças e controle, por exemplo, é renhido defensor dos interesses do erário e da Administração Pública, sempre no eficiente desempenho funcional de controle interno de legalidade sobre os atos de despesa executados pelas autoridades administrativas fiscalizadas, portando-se de forma exemplar na atuação como funcionário estatal, não se pode falar de responsabilidade administrativa e invadir a seara da intimidade e da vida privada do agente, ainda que seja mau marido, adúltero, péssimo pai, que não concede amor e carinho aos seus filhos; ou seja motorista imprudente; tenha, dentro de seu domicílio ou em locais reservados, práticas sexuais escandalosas, não ortodoxas ou bizarras, denunciadas à Administração por ex-esposas ou ex-namoradas; não seja comedido no falar, ou se revele imoderado nos gestos, no âmbito dos dias de lazer e em caráter particular, com a família e conhecidos; se for mau síndico; se não indeniza os danos causados a veículos de terceiros, apesar de reconhecer sua culpa; se é briguento ou vizinho incômodo; se coleciona revistas ou materiais impróprios para a moralidade convencional.
Sem dúvida que melhor seria que o servidor recebesse o prêmio de cidadão honorário, medalhas de honra ao mérito, por seu comportamento mesmo na vida privada ou fora da função pública.
Mas para os desvios de conduta consumados nas hipóteses aventadas supra, em que os desregramentos ou atos não recomendáveis se restringem à esfera da vida privada, ou mesmo da indevassável intimidade, garantidas pela Constituição, sem que exista repercussão negativa sobre o desempenho funcional, ou sobre a honra e credibilidade que deve atrair da sociedade aquele que se apresenta como integrante da Administração Pública, não há como se divisar a possibilidade de responsabilidade administrativa.
A vida íntima do servidor, seus momentos de privacidade ou de contato social, ainda que não lhe confiram o título de cidadão-modelo, não podem ser devassados para fins de punição disciplinar, desde que inexista repercussão sobre a função pública.
As sanções cabíveis para os supracitados atos censuráveis serão de ordem cível, moral, multas de trânsito, multas de condomínio, perda sentimental com o distanciamento do convívio com os filhos de que não cuidou, ruptura matrimonial por relacionamentos extraconjugais contínuos, dentre outras conseqüências sociais adversas, como repulsa da vizinhança, ser objeto de comentários jocosos por parte dos conhecidos, etc. Mas não haverá ensejo a que se fale de demissão por condutas inteiramente alheias à função pública, as quais também não projetam efeitos diretos negativos sobre o exercício funcional ou a qualidade de funcionário.
Fábio Medina Osório parece encampar essa linha de entendimento:
O problema da falta de probidade administrativa tem que ser visto no universo da ética pública, no contexto de normas jurídicas especificamente protetoras das funções públicas, dos valores imanentes às Administrações Públicas e aos serviços públicos. [...] Caberá ao direito disciplinar tutelar condutas incompatíveis com as funções. A improbidade administrativa não se configura, pois, pelo chamado comportamento incompatível com a função pública, se tal conduta estiver dissociada totalmente das atribuições do agente público, visto que não tratamos de uma honra privada e de seus reflexos nos setor público, mas sim da honra diretamente vinculada às funções públicas.[12]
Outra será a consideração se existe prejuízo direto à função, como no caso do policial que recebe ajuda de custo de pessoa envolvida em crimes, ou que é diretor-presidente de escola de samba comprovadamente envolvida com o crime organizado ou o jogo do bicho, porquanto a atividade privada causa dano à condição de idoneidade para o exercício da função policial.
4. A repercussão administrativa-disciplinar de condutas da vida privada deve considerar as atribuições funcionais do servidor
É mister sustentar que, para gerar responsabilização funcional, os atos da vida privada irregulares devem guardar vinculação com as atribuições do cargo específico em que investido o servidor público, como previsto no art. 148, parte “b”, da Lei n. 8.112/1990.
O que deve ser cotejado, portanto, é a relação direta de prejuízo entre a conduta privada, se manifestamente incompatível com os valores esperados dos titulares de cargos na Administração Pública, e sua imediata vinculação com as atribuições funcionais do posto ocupado pelo servidor.
Se um auditor fazendário (depois de ser lesado por um comerciante de automóveis, que lhe vendou veículo com vícios de qualidade ou com engano ou vultosa desvantagem financeira) é acusado de emitir um cheque sem suficiente provisão de fundos, acusado de crime de estelionato, o que seria objeto de discussão entre as partes em face do confronto patrimonial entabulado, há nessa rixa, de caráter estritamente privado, atentado contra a qualidade funcional, quebra da confiança do Estado na pessoa do agente público? Na verdade, o que sucedeu foi um conflito de natureza particular, alheio à função pública.
Ao contrário, se o servidor é um estelionatário reincidente, contumaz, aí sim, patenteia-se a incompatibilidade da prática de crime comum em face da dignidade esperada de um integrante da Administração Pública.
Tanto que em certos estatutos disciplinares, como dos policiais civis, de regra, a prática de crimes comuns, contra o patrimônio, os costumes, a fé pública, constitui falta disciplinar, passível de demissão.
Edgar de Carvalho ajunta: “Mesmo fora da função, quando o funcionário pratica ato que o desmerece perante o conceito público, é passível de responsabilidade.”[13]
Marcelo Caetano sentencia: “É preciso que, fora do serviço, não esqueça o respeito devido à corporação de que faz parte”, mas ressalva que o dever de boa conduta na vida privada não compreende a esfera da intimidade do funcionário; só as manifestações da vida particular que, por sua publicidade, possam causar escândalo e comprometer o prestígio da função pública.[14]
Fábio Medina Osório ainda complementa:
O conceito de desonestidade, no terreno jurídico, é mais restrito que o peculiar do universo moral. Neste, a desonestidade pode englobar falhas de caráter ou distorções morais bastante polêmicas, como aquelas relativas a deveres de fidelidade matrimonial ou nos relacionamentos de amizade e de amor, sem falar nas questões puramente patrimoniais, como dívidas e preferências por jogos de azar. Na honestidade profissional, ao contrário, homens com vícios morais podem encaixar-se tranqüilamente, desde que observem as regras de bom exercício de suas atividades funcionais. É dizer: o sujeito que é mau marido, ou péssimo amigo nas relações pessoais, mau pai, mau filho, jogador, com qualquer tipo de orientação sexual, poderá cumprir com todas as suas obrigações profissionais, satisfazendo os pressupostos da honestidade funcional, embora, no serviço, tal pessoa possa ser apontada como desleal, carreirista ou mau caráter, e na vida pessoal ser considerada, no mínimo, desregrada ou fora dos padrões tidos como normais. Enfim, cabe reconhecer que há características que, mesmo no interior da vida profissional, na empresa ou no órgão público, são pejorativas e denunciam falhas morais na pessoa, quando não indiciam traços subjetivos infensos à normalidade social predominante. Todavia, tais fatores podem não ingressar na órbita mais estreita da honestidade profissional. [15]
Por exemplo, poderá ser enquadrada como prevalecimento abusivo da condição de policial civil (inciso XLVIII do art. 43 da Lei nº 4.878/1965), falta apenada com demissão, a eventual conduta cometida por servidor que, em dia de folga, munido da pistola que lhe é acautelada em razão do cargo público, após ingestão de bebida alcoólica em bar, cometa crime de homicídio contra particular indefeso e inocente, pois o agente público, na hipótese, terá se valido do treinamento, que lhe é ministrado em virtude da função policial, e do porte de arma que a profissão lhe faculta para, em momento de folga, atentar, sem justa causa, contra a vida da vítima.
Esse juízo é corroborado pelo colendo Superior Tribunal de Justiça, que denegou mandado de segurança impetrado por servidor público, demitido em face do enquadramento de sua conduta com improbidade administrativa, por incursão no tipo previsto no art. 11, V, da Lei nº 8.429/92, em combinação com o art. 132, IV, da Lei nº 8.112/90, por transgressão praticada fora do exercício funcional, mas que se julgou, por reflexo, comprometedora da probidade administrativa, consoante trecho da ementa do acórdão, a seguir transcrita (destaques não originais):
“MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRISÃO EM FLAGRANTE DE ADVOGADO DA UNIÃO QUE PRETENSAMENTE SE FEZ PASSAR POR OUTRA PESSOA EM CONCURSO PÚBLICO. PLEITO DE TRANCAMENTO. TESE DE FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A INSTAURAÇÃO DO PROCESSO POR ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. PREVISIBILIDADE DA CONDUTA EM TESE NA LEGISLAÇÃO DISCIPLINAR APLICÁVEL. NULIDADE DA PORTARIA. NÃO-OCORRÊNCIA. FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE. DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO EVIDENCIADO.
1. Não se vislumbra a atipicidade da conduta que, em tese, pode perfeitamente assumir adequação típica, amoldando-se ao disposto nos arts. 116, inciso IX e 132, inciso IV, ambos da Lei n.º 8.112/90, este último c.c. o art. 11, inciso V, da Lei n.º 8.429/92. 2. Embora o pretenso ato ilícito não tenha sido praticado no efetivo exercício das atribuições do cargo, mostra-se perfeitamente legal a instauração do procedimento administrativo disciplinar, mormente porque a acusação impinge ao Impetrante conduta que contraria frontalmente princípios basilares da Administração Pública, tais como a moralidade e a impessoalidade, valores que tem, no cargo de advogado da União, o dever institucional de defender. Ordem denegada.”[16]
Em igual compasso, Carlos S. de Barros Júnior destaca que os fatos praticados na vida particular do servidor só poderão ser computados para fins de punição na órbita disciplinar quando afetarem gravemente a consideração do infrator e abalarem o exercício funcional, pautando-se o exame segundo o meio, os costumes vigentes no meio social, o grau de reprovação da conduta e sobretudo a publicidade e o escândalo decorrentes da má atitude, tendo em vista que as instituições são julgadas por seus integrantes, mas afiança que não se pode invadir a esfera da intimidade do funcionário.[17]
A Advocacia-Geral da União emitiu parecer no sentido de que é “incabível a responsabilização administrativa se a infração é praticada no exercício de cargo de confiança de entidade representativa de classe de servidor federal, portanto, em regra, sem relação com o desempenho do cargo e o Serviço Público.”[18]
O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, considerando que a responsabilidade do servidor público decorre da prática de ato comissivo ou omissivo que lhe seja atribuído em razão do desempenho de suas atribuições, ou a pretexto de executá-las, decidiu que a conduta de policial, absolutamente circunscrita ao âmbito de sua vida particular e de modo algum envolvendo a instituição pública, é atípica para fins disciplinares.[19]
Julgou o Superior Tribunal de Justiça no mesmo diapasão:
1 In casu, em nenhum momento restou efetivamente evidenciado que o Recorrente estivesse no exercício de seu mister ("em serviço"). Isso porque, uma vez que os fatos se deram em local diverso do ambiente do trabalho, ainda que próximo, como consta do Relatório Final, somente seria cabível a imputação acaso ficasse demonstrado que o Recorrente estava, ao menos, no cumprimento das atribuições do cargo no momento do ocorrido, o que não ocorrera na espécie. 2 O fato de cuidar-se a vítima de funcionário público, colega de serviço do Recorrente, e de existir uma animosidade entre eles em razão do serviço, segundo consta dos autos, não se mostra suficiente para tipificar o ilícito administrativo. Recurso conhecido e parcialmente provido para anular a pena demissória aplicada ao Recorrente. [20]
Di Pietro doutrina: “A vida privada do funcionário, na medida em que afete o serviço, pode interessar à Administração, levando-a a punir disciplinarmente a má conduta fora do cargo”, mas enfatiza que, para configurar ilícito disciplinar, o mau comportamento na privacidade do servidor tem que, direta ou indiretamente, surtir reflexos na vida funcional.[21]
Marcelo Caetano sublinha que as condutas na vida privada só ensejam responsabilização administrativa quando se projetam na situação atual do agente.[22]
No regime da Lei 8.112/90, o servidor público comente poderá ser demitido se sua conduta se amoldar a uma das hipóteses previstas, taxativamente, no seu art. 132. Os atos da vida privada, em princípio, para constituírem infrações funcionais, devem constar, expressamente, no estatuto disciplinar dos servidores públicos, como conduta passível de punição.
Fábio Medina Osório endossa esse juízo:
Não há dúvidas de que, para determinada classe de servidores, algumas condutas privadas podem ser explicitamente consideradas como violadoras do dever de honestidade básica funcional, traduzindo-se como improbidade administrativa. Não existirá qualquer impedimento para uma eventual deliberação legislativa nesse sentido, sempre que observada a razoabilidade do modelo normativo de comportamento ilícito. No silêncio legal, sem embargo, não se há que falar, ainda, de improbidade administrativa caracterizada pela conduta incompatível com as funções. A nota da legalidade advém, precisamente, da intervenção direta da legislação setorial.[23]
Muita ponderação e cautela devem presidir a apreciação concernente à repercussão administrativa da conduta da vida privada do servidor público. Só em casos inquestionáveis de prejuízo para a atividade funcional ou o prestígio direto do funcionário em face das atribuições específicas de seu cargo, prejudicadas pela ação consumada no âmbito particular.
4 Responsabilidade por atos praticados na vida privada sem vinculação com as atribuições do cargo público
Luciano Pereira da Silva assentou, em parecer proferido na Administração Pública federal em 1958:
A prática de atos ilícitos, desde que sem qualquer ligação com a atividade funcional do servidor, em local diverso do da repartição, e fora do período normal de trabalho, exclui, de um modo geral, a responsabilidade administrativa. A sanção penal que do ato possa advir só influirá de modo mediato ou pela condenação à pena de reclusão por mais de dois anos ou de detenção por mais de quatro (Código Penal, art. 68, n. II), ou no caso de interdição temporária de profissão, cuja atividade seja imprescindível ao desempenho da função pública (Código Penal, art. 69, n. IV). Mas, em qualquer hipótese, não há processo administrativo a ser instaurado, com fundamento no art. 217 do Estatuto dos Funcionários. No exemplo formulado pela entidade consulente, não haveria procedimento administrativo a intentar, embora a condenação criminal, se viesse a ocorrer, pudesse influir na situação funcional do acusado, se penas acessórias lhe fossem cominadas, nas hipóteses dos arts. 68, n. II, e 69, n. IV, do Código Penal.[24]
Decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios que a prática de desvio de comportamento por policiais civis, cuja íntima motivação se referia a assunto de natureza particular (interesse amoroso), ocorrido fora do serviço, quando os agentes públicos não declinaram sequer a condição funcional quando dos acontecimentos, não corresponderia a uma infração disciplinar, pois que perpetrado ato estranho à função policial, incompatível com o tipo disciplinar de abuso da função policial, motivo da anulação da pena demissória por falta de justa causa para a punição.[25]
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região julgou, no mesmo diapasão, que fatos da vida privada, ocorridos em uma partida de futebol, sem qualquer relação ou repercussão no exercício da função pública, não autorizavam a abertura de sindicância ou processo administrativo.[26]
Fábio Medina Osório aponta:
É certo, no entanto, que não se pode esquecer que os agentes públicos estão submetidos a um regime jurídico de direito público, mais severo e rigoroso que outros. Trata-se de um regime estatutário, em que, naturalmente, a vida privada desses funcionários se reduz consideravelmente, em medidas variáveis. Daí que haja um desaparecimento da vida privada dos agentes públicos, todavia, vai uma longa distância, até mesmo porque isso é inviável. Por tal razão, a improbidade não se identifica com a mera imoralidade, mas requer, isto sim, uma imoralidade qualificada pelo direito administrativo. [...] Os agentes públicos gozam de direitos fundamentais, entre os quais está, é óbvio, o direito à intimidade, à privacidade, ao desenvolvimento livre de seus privados estilos de vida e personalidades. Em todo caso, os agentes públicos têm, sem lugar a dúvidas, espaços privados nos quais podem praticar atos imorais, desde que esses atos não transcendam os estreitos limites da ética privada, não afetem bens jurídicos de terceiros. Os direitos humanos, fundamentais, do homem e do cidadão, protegem o indivíduo contra atuações abusivas, ilícitas, desnecessárias, do Estado. [...] É certo que determinadas condutas ilícitas, praticadas por agentes públicos em suas vidas privadas, não têm por que integrar necessariamente o núcleo da falta de probidade administrativa. A proporcionalidade exige que se analisem as condutas sob perspectivas distintas, valoradas gradualmente a partir da idéia de que existem múltiplos mecanismos institucionais de reação contra os atos ilícitos.” [27]
Não obstante, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios decidiu, em sentido diverso, que “o comportamento irregular por parte de policial, ainda que verificada esta situação ao agir como cidadão comum, não obsta a abertura de sindicância, porque tal não o eximiria de zelar pela imagem de sua instituição, no seu habitual proceder.”[28]
Por causa dessas ponderações, o mais apurado bom-senso deve nortear a aferição da quebra do decoro funcional e do comprometimento moral referente às atribuições funcionais próprias do cargo ocupado pelo servidor com desvio de conduta alheia à função pública.
Se um servidor, ocupante de cargo de bibliotecário, cumpre pena criminal alternativa, por causar lesões corporais leves em vizinho, após desentendimento voltado por divergências próprias da gestão financeira do condomínio do edifício, não haverá repercussão funcional dessa punição, o que poderia ser diferente no caso de um policial, condenado por crime comum de tortura, a qual, inclusive, acerreta a perda do cargo como efeito acessório da condenação pelo juízo penal.
5. Conclusões
Pode-se concluir com as seguintes ponderações:
1) é ou não caso de se considerar gravemente ofendida a conduta funcional esperada do titular daquele cargo público específico? Essa deve ser a indagação prévia ao juízo em torno da existência de responsabilidade disciplinar por atos alheios à função pública;
2) cumpre perquirir: a prática desse procedimento habitual ou mesmo isolado inviabilizou por completo a possibilidade de o servidor exercer suas atribuições funcionais, comprometidas em sua credibilidade e honorabilidade de forma sobremodo grave, a ponto de se exigir a expulsão do acusado do serviço público?
3) é a ofensa à moralidade profissional, a indignidade estritamente associada às atribuições funcionais do cargo em que investido o servidor (art. 148, fine, Lei federal n. 8.112/1990), que deve ser considerada para ensejar juízo reprobatório implicante de responsabilidade administrativa, não a violação de comportamento referente à qualidade de pai, tutor, marido, condômino, no que tange à vida íntima, privada, às relações sociais reservadas do funcionário;
4) a responsabilidade disciplinar deve ser associada à incontinência de conduta funcional ou ao ato da vida privada, cujo cometimento torne incompatível o desempenho das atribuições administrativas pelo servidor desregrado;
5) não há ensejo, porém, para elastecer o alcance das punições disciplinares para fatos da vida privada ou da intimidade, que devem ter seu âmbito próprio de repressão, com conseqüências cíveis, comerciais, familiares, sociais, desaprovação moral contra o servidor, todavia sem repercussão na via administrativa;
6) Há processos cíveis de indenização de danos morais e materiais, juízos de família, mesmo processos criminais, afora a censura social, de conteúdo moral, contra a atitude reprovável da vida privada, todavia não se deve trazer para a via administrativa comportamento alheio inteiramente às funções oficiais e que não revele direto comprometimento da dignidade do cargo.
REFERÊNCIAS
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_________. Teoria e prática do direito disciplinar. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17 ed., São Paulo: Jurídico Atlas, 2004.
GUICHARD-AYOUB, Éliane. La fonction publique. Paris: Masson, 1975.
JÚNIOR, Carlos S. de Barros. Do poder disciplinar na administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972.
LUZ, Egberto Maia. Direito Administrativo disciplinar: teoria e prática. 4 ed. rev. atual. e ampl., Bauru: Edipro, 2002.
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WALINE, M. Droit administratif. 8 ed., Paris: Éditions Sirey.
[1] COSTA, José Armando da. Direito administrativo disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 201.
[2] Processo: AMS 2006.37.01.000560-9/MA; APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA, relatora a juíza federal convocada MONICA NEVES AGUIAR DA SILVA, 2ª Turma, DJU de 31/10/2007, p.53, data da Decisão: 20/08/2007, por unanimidade.
[3] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 74.
[4] Obra citada, p. 81
[5] AMS 1998.34.00.025150-5/DF, relatora a Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida, 5ª Turma, DJ de 27.10.2005, p. 71, decisão de 28.09.2005.
[6] WALINE, M. Droit administratif. 8ª ed., Paris: Éditions Sirey, p. 803.
[7] GUICHARD-AYOUB, Éliane. La fonction publique. Paris: Masson, 1975, p. 257.
[8] JÚNIOR, José Cretella. Prática de processo administrativo. 3a. ed. rev. e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 84.
[9] COSTA, José Armando da. Teoria e prática do direito disciplinar. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.2.
[10] APC 20010150057360, acórdão n. 159977, julgamento de 18.02.2002, 4ª Turma Cível, relator o Desembargador Sérgio Bittencourt, DJU de 18.09.2002, p. 46.
[11] LUZ, Egberto Maia. Direito Administrativo disciplinar: teoria e prática. 4ª. ed. rev. atual. e ampl., Bauru: Edipro, 2002, p. 256.
[12] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 285, 87.
[13] CARVALHO, Edgar de. Direitos e deveres do funcionário da Prefeitura do Distrito Federal. Rio de Janeiro e São Paulo: Freitas Bastos, 1957, p. 136.
[14] CAETANO, Marcelo. Manual de direito administrativo. 10ª.ed., Coimbra: Almedina, vol. I e II., p. 751.
[15] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 150.
[16] MS 11035/DF, relatora a Ministra Laurita Vaz , 3ª Seção, Julgamento em 14/06/2006, DJ de 26.06.2006, p. 116
[17] JÚNIOR, Carlos S. de Barros. Do poder disciplinar na administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 24.
[18] Parecer AGU: GQ-153, Advogado-Geral da União: Geraldo Magela da Cruz Quintão, data do adoto: 25.06.1998, data do Aprovo: 25.06.1998, Processo 12100.008960/97-93, Ministério da Fazenda, Assunto: Aplicação de penalidade a servidor, Parecer AGU No. WM-5/98, Consultor da União: Wilson Teles de Macedo, data de Emissão: 19.02.1998.
[19] AC – Apelação Civel 135515, Processo: 9805279413-PB, 2ª Turma, DJ de 30.04.1999, p. 1011, relator o Desembargador federal Petrucio Ferreira, unânime.
[20] RMS 16264/GO, 2003/0060165-4, relatora a Ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, julgamento de 21.03.2006, DJ de 02.05.2006, p. 339.
[21] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17ª. ed., São Paulo: Jurídico Atlas, 2004, p. 526-527.
[22] CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 398.
[23] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 274.
[24] SILVA. Luciano Pereira da. Questões jurídicas em processos administrativos: pareceres (2ª série). Ministério da Agricultura: Rio de Janeiro, 1942, vols. I e II, p. 47-49, pareceres (2ª série).
[25] Mandado de Segurança 482795/DF, registro do acórdão n. 80968, julgamento de 17.10.1995, Conselho Especial, relator o Desembargador Carlos Augusto Faria, DJU de 18.12.1995, p. 19.261, seção 3.
[26] AMS 199901000619300, Processo: 199901000619300-MT, 2ª Turma, DJ de 31.03.2005, p. 44, relator o Desembargador federal Flávio Dino De Castro e Costa (convocado).
[27] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 87.
[28] APC 3325394/DF, registro do acórdão n. 78059, data de julgamento de 12.12.1994, 5ª Turma Cível, relator o Desembargador Romão C. Oliveira e relator designado o Desembargador Dácio Vieira, DJU de 23.08.1995, p. 11.702.