Em final de 2001, escrevi um artigo sob o título: O VÍRUS DA GANÂNCIA (Gazeta do Povo, 13.11.2001).
Entre outras considerações, ponderei então que, na preocupação de garantir a sua saúde e a de seus familiares, o cidadão brasileiro paga mensalmente, pelo menos, três vezes, sem alcançar, mesmo assim, o seu intento:
1. Desconta compulsoriamente, em folha de pagamento, a quota correspondente à previdência pública (INSS), cuja arrecadação, todavia, de tanto que se desviou de seu destino, não mais atende aos seus fins, compelindo assim o cidadão brasileiro a outro pagamento;
2. Paga um plano privado de saúde, ao qual nem todos os brasileiros têm acesso, dado o alto custo. E nem assim consegue todos os tratamentos que esperava. Submete-se por isso a mais um pagamento:
3. Acaba por pagar os tratamentos não cobertos pela previdência pública nem pelos planos privados de saúde.
Passados seis anos desde a publicação de tal artigo, eis que, de repente, sofro na própria pele a amarga experiência de virar refém do meu plano de saúde, quando, inesperadamente, fui internado num hospital.
Nunca imaginei que, dentro do hospital, teria que depender de prazos estabelecidos pelos planos de saúde para a liberação de exames considerados necessários pelos médicos, apesar de me encontrar rigorosamente em dia com meus pagamentos. Segundo fui informado, todos os planos de saúde agem assim: exigem prazos para liberar exames nos hospitais, que vão desde setenta e duas horas, até duas semanas ou mais.
Tal prática significa, no mínimo, um grave desrespeito: aos médicos, cuja competência é posta em dúvida com esse procedimento; aos familiares do paciente, que ficam a depender dos humores de um representante do plano para liberação dos exames; ao paciente, que acaba perdendo a paciência na espera da liberação; enfim, à sociedade, que não merece ver a saúde jogada à mercê dos interesses econômicos.
Ocorre que, hoje, o cidadão brasileiro vem desembolsando ainda mais para a saúde, até mesmo mais do que o poder público, que já tem obrigação neste sentido.
Qual seria a causa dessas distorções?
Tudo aponta para a “onda” de privatizações dos serviços públicos que vem assolando o Brasil a partir de 1995.
Atividades próprias e exclusivas do poder público, que nunca poderiam ser privatizadas, foram rapidamente entregues a empresas privadas que lucram avidamente, sem que a sociedade alcance os resultados desejáveis.
Evidentemente, não se pode afirmar que uma empresa apenas por ser pública seja, necessariamente, ineficiente, enquanto a privada seja, sempre, eficiente.
Os fatos demonstram exatamente o contrário. A começar pelo serviço de comunicações, cujo setor de telefonia é hoje campeão de reclamações junto ao PROCON, até os demais setores da infra-estrutura, já privatizados (energia, transportes, rodovias, etc.): tudo se resume em verdadeiro comércio da coisa pública.
O caso específico da saúde, indiscutivelmente, assume gravidade máxima, até porque a carga tributária do cidadão brasileiro chega a ser “pornográfica”, eis que paga por ano quatro meses de seu salário a título de impostos.
Afinal, por que a sociedade brasileira há de ficar à mercê de planos privados de saúde, quando esta função já é de responsabilidade óbvia do poder público?
(Este artigo era para terminar aqui. Foi escrito no apartamento de um hospital, em 18/8/2008, décimo dia de internamento do autor, enquanto esperava a liberação de um de seus exames. Porém, novamente internado pouco depois, oportunas se tornam as seguintes reflexões, rascunhadas na UTI, em 1/10/2008).
Embora o segundo internamento tenha ocorrido em hospital diferente e sem necessidade de novos exames que dependessem de plano de saúde, outras agravantes sucederam que este espaço não permite abordar.
Seja como for, a coincidência com as Olimpíadas, por ocasião do primeiro internamento, sugere-nos breve incursão histórica. No pensamento grego, o esporte sempre esteve ligado ao interesse da saúde, assim como, na sabedoria romana, encontramos este belo ensinamento: Salus populi suprema Lex esto – Que a saúde do povo seja a suprema Lei.
Atualmente, a inversão de valores faz com que as pessoas sensatas deixem de acreditar no esporte, a partir do momento em que ele deixa de ser esporte para se tornar empresa.
O difícil é acreditar que a saúde do povo deixe de ser prioridade absoluta assumida pelo poder público para se tornar mercadoria cara. É que, neste campo, entram em jogo as nossas próprias vidas.
ALOÍSIO SURGIK é professor universitário